segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

RIGOR E AMOROSIDADE

A árvore que o sábio vê não é a mesma que o tolo vê.

William Blake


O ano começa e, junto com ele, uma dádiva. Um presente em forma de palestra, bate-papo, troca de experiências, seja lá o nome que isso possa ter. E como tudo começou para nós, professores?

Bem... Ela chegou em seu fusquinha 69, o “Beterrabinha Voadora” (apelido dado por seus alunos); o calor abafava o final da tarde de terça-feira, segunda noite de nosso retorno ao trabalho. Estacionou o carro em frente à escola, entrou em nosso espaço de mansinho, sentou-se na sala dos professores, pediu água, sorriso aberto estampado no rosto. Os olhos brilhavam. Seria ela nossa palestrante? Falante, mas sem desejar incomodar as pessoas, parecia gostar do outro que estava à frente, embora não o conhecesse. Em sua simplicidade, perguntava nossos nomes, era toda interação.

Foi encaminhada ao salão para seu encontro com toda a equipe. E foi então que aquilo, que já parecia diferenciado, começou a se concretizar nos abraços com que antigos educadores a acolhiam em sua entrada tão singela. Abraços apertados, afeto, comunhão. Palavras de amor. Saudade, muita saudade. Nossa, a amorosidade, um dos eixos do nosso encontro, já saltava naquele momento inicial, sem se deixar aprisionar, como um pássaro livre, leve, solto? Seria possível?

Sim, o nosso encontro neste começo de ano tinha como tema Rigor e Amorosidade e foi iniciado. Aproximadamente cem educadores presentes. Alguns, ainda sem conhecer nossa palestrante, vieram prontos para algo sistematizado, racional e objetivo, talvez recheado de teorias pedagógicas ou mesmo possíveis encaminhamentos para se lidar com duas vertentes aparentemente tão antagônicas. Afinal nossa visitante tinha história, curriculum, mestra experiente com quase 50 anos de atuação na área educacional. Conhecimento teórico e prático não lhe faltava.

Mas... foi logo nos primeiros momentos que percebemos que estávamos, de fato, diante do inusitado. Não porque ela não nos falasse de educação, de conhecimento, mas porque ela parecia transformar-se nos próprios eixos a respeito dos quais iria falar. Rigor, no sentido de fortaleza. Amorosidade, no sentido do que é propenso ao amor. Transfigurava-se. Era toda força e doação. Nos gestos, no tom da voz. Na determinação.

Agigantou-se. Ao olhar o coletivo, mas sempre buscando o individual, na fala repleta de verdade, coerência e humor, nas expressões faciais que não sonegaram em momento algum o afeto, a cumplicidade, a partilha.

Agigantou-se. Optou pelo caminho da simplicidade, da experiência, do depoimento de situações vividas. Pela valorização dos educadores que lá estavam.

Agigantou-se ao nos ouvir, de forma penetrante e curiosa, com a preocupação de quem, com certeza, não estava lá com o mero intuito de transmitir um saber específico, mas de nos perceber e de desnudar-se, entregar-se à platéia, revelando sua força interior e sua postura de educadora plena.

Nos rostos dos professores havia de tudo: a curiosidade, traduzida por olhos bem abertos e atentos, a gargalhada gostosa e o sorriso cúmplice pelas histórias narradas, a perplexidade e a emoção diante do inesperado, do sentimento que transbordava nos olhos úmidos e no sorriso franco. Emoção pura na recordação de mestres e alunos. Verdade e despojamento. Entrega.

Não, não é o caso de contar aqui tudo o que foi lá exposto. O foco maior agora é outro.

Ausonia Donato, nossa convidada, esteve conosco por duas horas e meia e nos deixou um presente. Um tesouro só revelado pelos que possuem a força interior para tal e admirado por quem tem olhos para enxergar, de fato, a razão maior de educar. Um tesouro que tem como matéria-prima a generosidade.

Rubem Alves já dizia: “A diferença se encontra onde os olhos estão guardados. Se os olhos estão na Caixa de Ferramentas, nós os usamos por sua função prática. Vemos objetos, sinais luminosos. O ver se subordina ao fazer. Mas quando os olhos estão na Caixa de Brinquedos, eles se transformam em órgãos do prazer: brincam com o que veem, olham pelo prazer de olhar, querem fazer amor com o mundo”. Amorosidade.

É verdade, a função primeira da educação parece ser a de ensinar a ver. E só podemos fazer isso com nossos alunos se soubermos enxergá-los como Ausonia nos enxergou. Se formos verdadeiros, se não tivermos medo de nossos erros, se o espírito de doação nos habitar, se procurarmos em nossas crianças e adolescentes seus anseios, necessidades, carências, alegrias. Há pessoas de visão perfeita que nada veem. O ato de ver não é natural, precisa ser aprendido, é necessário conseguir ter olhos de poeta. Para alguns, significa resgatar esse saber, perdido sabe-se lá onde, quando ou por quê.

Se ser educador, de fato, é deixar marcas, é fazer a diferença na vida de nossos jovens, que marcas queremos deixar? De que forma? Que caminho pessoal e coletivo faremos? Como? Que intenção pedagógica estará por trás de nossas ações? Qual o nosso compromisso?

Ausonia Donato, com certeza, deixou sua marca num grupo de educadores que iniciam esse ano de 2012 revendo suas práticas, retomando caminhos, construindo novos saberes. A marca do rigor, quando constatamos a coerência de seu pensamento em suas ações. A marca da amorosidade, ao nos abraçar com tanto desprendimento. A marca de saber ser.

Nosso encontro, que teve um título tão sério, poderia, agora com nossos olhos na Caixa de Brinquedos, também se chamar, de acordo com as experiências contadas por Ausonia: “Se meu fusca falasse, contaria sobre minhas andanças pelo mundo, meus “causos”, descobertas e minha enorme paixão: a arte da partilha e da comunhão com o outro ”.

E não será isso a Educação?

Um brinde ao nosso novo ano que agora se inicia! Que nossa comunidade possa se olhar com visão maior de mundo, desprendimento, força interior, sempre em busca dos diferentes saberes e do acolhimento ao outro, tão essencial ao fazer pedagógico! Um brinde de agradecimento a Ausonia! Um brinde a nossa equipe, pois brindar é, segundo os dicionários, “beber à saúde de, em honra de, oferecer uma dádiva, um presente a, conceder, dar” ! Tim tim!

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