sexta-feira, 26 de agosto de 2011

FILME "COMO ESTRELAS NA TERRA" - A EXISTÊNCIA ENTRE ESPELHOS, CORES E CANÇÕES


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Paulo de Tarso de Araújo Leite*

Como estrelas na tela, as letras começam a aparecer e, num ritmo cada vez mais intenso, misturam-se, confundem-se; ao fundo, há a imagem de personagens raivosos os quais mais tarde se entenderá. Essas são as primeiras imagens do filme “Como estrelas na Terra”, de Aamir Khan, seguidas pela cena em que um menino, Ishaan, protagonista do filme, olha atento para o movimento lento de pequenos peixes num córrego. Com o olhar fixo em sua garrafa transparente em que alojara o peixe e depois ainda quando o coloca num aquário junto a outros peixes, percebemos o quão atento é o menino, um olhar tão imerso quanto ao que ele reserva a um pequeno pedaço de metal que encontra e guarda e que, mais tarde, no decorrer do filme, o revisitaremos, bem como ao quebra-cabeça que monta na casa em que mora. Essa atenção e felicidade é o que se contrapõe à cena posterior em que o menino tenta devolver a bola aos garotos de sua rua, mas erra o alvo, jogando-a para além da cerca, sendo então agredido por um deles.

O mundo começa a se mostrar dissonante com aquela felicidade exprimida pelo menino nas primeiras cenas. O espaço das relações revela intolerância e violência. A escola, lugar onde o saber se supõe em movimento, é um lugar onde a alegria e o olhar atento também não encontram espaço, tal como constatamos na cena em que, durante uma aula de gramática, o menino se volta para a janela e sua profunda observação se atém a uma poça d’água sendo atravessada por uma roda de bicicleta. Uma atenção tão natural e devotada a uma poça d’água se torna maior do que a aula de gramática em curso, o que provoca a ira da professora. É justamente nessa aula de gramática que algo crucial é revelado a nós, espectadores, quando a professora ordena que o garoto faça uma leitura: Ishaan não consegue realizar a leitura e relata inocentemente à professora: “As letras estão dançando”. Um comentário tão inesperado, quanto poético desconcerta a professora e a enraivece. Não por menos: aquele espaço não era o da observação, mas sim o da regra, o da opressão, onde deixar o olhar e a imaginação voarem torna-se crime e motivo para humilhação.

É humilhado e desolado que o pequeno protagonista começa a andar pelas ruas. Aos poucos vemos que aquela felicidade e olhares que lhe são característicos gradativamente reencontram no espaço externo a alegria e da liberdade que perdera no interior da escola. A tinta que lhe cai no rosto enquanto observa o trabalhador, as cores ao seu redor, os quadros, os pássaros, os corpos, enfim, tudo parece devolver-lhe a presença e existência. O mundo, tal como suas letras, dança para ele, assim como dançam as cores na frágil gota d’água que ele mistura com o dedo e com o olhar. São nesses lugares de cor e movimento que o menino se identifica. Os números também dançam e, na prova de matemática, eles se movimentam, cedem à imaginação. Para a instituição de ensino tal olhar se torna alheio e longe de receber o devido respeito e reflexão. A reunião dos professores com os pais do menino comprova isso. Sentados, como num tribunal inquisidor, os professores iniciam uma série de críticas ferinas aos pais, a diretora insinua o caso do menino como sendo de retardo mental. Por esses mesmos uma suposta solução é dada aos pais: colégio para retardados mentais. Mas o pai do menino tem também outra suposta solução: o colégio interno, lugar de regras impostas, onde a amplidão do mundo externo que lhe dança e pula não tem vez. É assim que, de forma incisiva e traumática, Ishaan é apartado da família e de seu mundo para entrar nesse novo mundo de estagnação, uma separação que é expressa num caderno onde o menino desenha seu gradativo distanciamento da família.

A partir da exclusão do protagonista de seu mundo ao ser incluído no rigoroso claustro do colégio interno, o filme se intensifica na exibição de um processo destrutivo da personalidade do protagonista. Vale mencionar a aula em que um texto chamado Perspectiva é apresentado aos alunos pelo professor. Ei-lo: “Quando olho de cima, você é um pedaço de céu cheio de nuvens, até aparecer um elefante sedento, ou meus amigos pularem, talvez uma buzina de bicicleta, um pedregulho ou dois, até a bengala de um cego serve. Então a imagem se dissipa e você torna-se nosso rio outra vez”.

Ishaan, em sua primeira aula, é convocado a interpretar o texto. Tímido, ele assim o faz: “Eu acho que o que não vemos não sentimos. Mas às vezes o que vemos na verdade não é. E o que não vemos na verdade é. Quero dizer...”

Seu discurso é interrompido pelo professor insatisfeito que o repreende e pede para que outro aluno interprete. A interpretação está em jogo na cena. Ishaan faz sua interpretação; já o professor revela incapacidade interpretativa ao se deparar com a profundidade filosófica que o menino expõe, uma profundidade que é fruto de uma densa e cotidiana observação do mundo e dos seus sentidos, da poça que observava da janela de seu outro colégio, de um mundo externo onde, ao observá-lo, encontrava a felicidade e a alegria. Só seu novo amigo, Rajan Damadaran, que anda sempre de muletas por conta de um problema nas pernas, será o único que o acompanhará com a devida compreensão, que o entenderá a resposta de Ishaan e perceberá que o professor queria uma resposta pronta e superficial. Naquele internato as aulas de arte também se tornam lugar de inquisição, de regras opressoras, onde o olhar outro é inadmissível, assim como nas aulas de educação física que mais parecem um desfile militar. Na aula de português a gramática é vomitada numa profusão de conceitos abstratos. Enquanto isso, as letras na lousa ainda continuam dançando para nosso pequeno protagonista.

Mas, como já dissemos, o processo de destruição da personalidade está já em desenvolvimento. A cada aula, a cada humilhação, a cada repreensão, Ishaan vai se apagando, tornando-se sombrio. O que vemos é o aniquilamento gradual e cruel de sua individualidade. A família, nesse processo, também é distanciada pelo olhar ferido e esvaziado do protagonista, o mesmo olhar que outrora já denunciava no caderno de desenho esse processo próximo à partida para o internato. A canção da existência adquire contornos sombrios e nos diz ao fundo da imagem: “Meus olhos estão vazios, até as lágrimas me abandonaram. Silêncio preenche meu coração. Não sinto mais dor, estou amortecido. Todos os sentimentos me deixaram. Estou vazio”.

É uma canção que anuncia o emudecimento do ser, a morte cruel da imaginação e da inventividade. Mas outro processo entra em funcionamento com a substituição do até então professor de Artes. Esse processo é anunciado por um som de flauta, que atravessa inesperada e surpreendentemente a sala de aula. A canção sombria que outrora anunciava o fim dos sentidos agora cede para o som da flauta: som de um novo início possível para essa nova etapa do filme, som emitido pelo professor temporário de Artes, Ram Shankar Nikumbh, que surge pela primeira vez, caracterizado como um ser fabular com sua flauta encantada, cantando e dançando. Na letra dessa nova canção, um novo viés de sentidos se apresenta: “Quem disse que peixes não voam? (...) Então liberte sua mente, abra sua assas, deixe as cores se espalharem. Vamos girar nossos sonhos”.

Há uma nova ambientação de alegria naquele espaço. As crianças adoram, tornam-se finalmente crianças, menos Ishaan que permanece imóvel e ausente. Na primeira tarefa solicitada pelo professor, tarefa bem diferente das propostas pelo professor de Artes anterior, já que agora confere ao aluno a autonomia da produção, a movimentação de todos é grande, mas Ishaan não se mexe. A imagem enquadra o seu papel totalmente vazio, em branco, inerte, metaforizando como um espelho a própria alma do menino. Preencher esse papel novamente com as cores e com as profundezas da imaginação faz dessa etapa do filme a grande epopéia. E essa epopéia se dá pela observação do professor, pelo gesto de “importar-se” que sempre foi negado ao protagonista mirim, um gesto que entenderemos melhor em cenas posteriores. Antes, porém, vale ressaltar esse gesto de importar-se que faz com que o professor busque os motivos que levaram Ishaan àquela condição de exclusão e aniquilamento interior. É pelo gesto de importar-se, de busca, de observação que Ram se depara com as anotações do menino, repara na disposição diferente das letras, emociona-se, percebe o problema: aquelas palavras que dançam são frutos de uma imaginação poderosa e também da dislexia.

E os espelhos se dão. Aquela folha vazia precisava ser preenchida novamente com as cores da alma. Para isso era preciso restituir o colorido de Ishaan. Com se verá, professor Ram sabe mais que ninguém disso, prepara uma aula para seus alunos, começa a lhes contar a história de um garoto que não conseguia ler e escrever. Ishaan demonstra pelo olhar identificar-se e pensa que o professor está falando sobre ele, mas Ram começa a mencionar grandes personalidades e é por essas que uma nova significação começa a ser erigida. Quando Ram pede que os alunos saiam para produzirem, fica sozinho com Ishaan e revela o jogo de espelhos que norteia toda profundidade da relação entre os dois: faltava um nome a ser citado naquela aula e o nome era do próprio Ram. Nesse ponto, vemos que professor e aluno se tornam um só num processo de compartilhamento e desenvolvimento interior. E é aí que entendemos também o diálogo que, anteriormente, Ram tem uma colega de outro local de trabalho quando esta o interroga (“Quem você encontrou por lá”) e este a responde (“Eu mesmo”).

Nesse outro local, entre cenas de um colorido vibrante e crianças diversas, mais uma canção se desenvolve e marca a coloração dessa etapa do filme.

Olha pra eles, como gotas frescas de orvalho

Abrigadas nas palmas das folhas,

Presentes do paraíso,

Esticando e curvando, torcendo e deslizando,

Como delicadas pérolas brilhando de sorrisos...

Não deixemos perder essas estrelas na Terra

Como o brilho do sol num dia de inverno

Que banha o jardim de dourado,

Eles espantam a escuridão de nossos corações

E nos esquentam bem lá dentro

Não deixemos perder essas estrelas na Terra

Como o sono está preso atrás das pálpebras,

Onde doces sonhos abundam,

E no sonho um anjo aparece...

Como uma fonte de cores

Como borboletas nas flores

Como um amor descomprometido...

Eles trazem ondas de esperança,

Eles são o amanhecer dos sonhos

E a eterna alegria...

Não deixemos perder essas estrelas na Terra

(...)

Nesse fragmento, podemos perceber toda força que há no espelhamento que, no fundo, metaforiza também a relação necessária entre os seres humanos e que é perdida pelo mundo competitivo que assola a sociedade e destrói o mundo da criação representado pelo menino, um mundo apontado pelo professor Ram para os pais de Ishaan quando aquele lhes revela a dislexia do menino.

A recuperação de Ishaan se dá por um processo de entrega docente em que o professor o reconduz ao mundo e o apresenta para as palavras pelo caminho da multiplicidade de linguagens. As palavras, então, frutificam-se por massinhas, areias, sensações táteis, pinturas, montagens, áudios, jogos de amarelinha etc, porque é só no terreno da multiplicidade que a humanidade cresce e os sentidos podem fluir e tomar o devido lugar. E é nesse lugar que o sorriso de Ishaan retorna e sua folha-espelho começa a ser colorida.

Dá-se, então, por sugestão de Ram, um campeonato de desenho. Mas vale lembrar que esse campeonato é bem diferente dos que prega a sociedade competitiva segundo a qual o importante é ser “melhor” que os outros. É um campeonato que se dá num campo amplo, revelado pela panorâmica da imagem em que todos, alunos e professores, se aglomeram, se dispõem ao mesmo trabalho; um momento em que as hierarquias se desmontam e o poder instituído é vencido pelo poder coletivo em que cada um em sua singularidade compõe a coletividade. Ishaan, atrasado, chega com sua aquarela – presente de seu irmão e guardada até então no fundo da gaveta e da solidão. Os trabalhos se desenvolvem. Todos produzem, compartilham com os vários olhares os trabalhos que realizam e se divertem, inclusive os professores que em outro momento eram a expressão de um sistema inquisidor. No fluir daquele ambiente de produção e libertação dos grilhões hierárquicos e competitivos do mundo, Ishaan produz suas cores dançantes num cenário paisagístico pleno de beleza e Ram, por sua vez, produz em tela seu espelho: o retrato do próprio Ishaan que, ao ver-se na obra de seu professor, se entrega a um choro de renascimento. O fim da competição não poderia ser mais emblemático. Ishaan vence a competição, embora o trabalho de seu professor seja considerado como um vencedor também. Mais emblemático e profundo é a solução para esse impasse necessário de vencedores. O prêmio é a publicação do trabalho vitorioso como capa de revista, mas a decisão se dá pela a publicação dos dois trabalhos, os de Ram e de Ishaan, na mesma revista, como capa e contracapa, como espelhos um de outro, porque afinal de contas, as cores são de um mesmo sol e os seres, como estrelas na terra, são de uma mesma constelação e precisam brilhar juntas na mesma tela da existência.

*Mestre em Ciências da Educação, professor de especialização nas Faculdades Integradas de Patos e sociólogo da equipe multidisciplinar do Psicossocial da Secretaria Municipal de Educação de Patos-PB.

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