Philippe Perrenoud é doutor em Sociologia e Antropologia, tem 59 anos e leciona nas áreas de currículo, práticas pedagógicas e instituições de formação nas faculdades de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Genebra (Suíça).
"A perversão mais grave da avaliação é avaliar conhecimentos que a escola não ensinou"
O sociólogo suíço Philippe Perrenoud é uma referência para educadores no Brasil. Professor na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação na Universidade de Genebra, autor de vários títulos importantes na área de formação de professores - hoje considerados leitura obrigatória para os profissionais do ensino - Perrenoud é conhecido por suas idéias pioneiras sobre avaliação em sala de aula.
Entre seus livros, destacam-se Avaliação - Da excelência à regulação das aprendizagens, Construir as competências desde a escola, Pedagogia Diferenciada e Dez novas competências para ensinar.
O sociólogo educador estudou as desigualdades sociais e a evasão escolar e tem como uma das suas linhas de pesquisa a “fabricação” do fracasso escolar.
Perrenoud, que ficou conhecido no Brasil como o pensador dos ciclos de aprendizagem, é professor e pesquisador das áreas de currículo escolar, práticas pedagógicas e instituições de formação na Universidade de Genebra, onde se tornou um teórico rigoroso.
Seu trabalho tem contribuído não apenas para uma melhor compreensão do que acontece na Escola, mas também para a mudança de seu funcionamento, na tentativa de torná-la uma instituição cada vez menos injusta e desigual.
O autor foi uma referência para os novos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e do Programa de Formação de Professores Alfabetizadores, estabelecidos pelo MEC, nos anos 1990.
Philippe Perrenoud concedeu essa entrevista sobre Avaliação Formativa e as relações de poder entre professores, estudantes, pais e instituições.
O que dizer da perversão de um ensino que prepara somente para a prova?
Phillipe Perrenoud: Supõe-se que a avaliação verifica unicamente o que é ensinado e, a princípio, tudo o que é ensinado.
A perversão mais grave da avaliação é avaliar conhecimentos que a escola não ensinou.
Mas é desejável que, de alguma forma, uma parte da formação seja avaliada.
Como poderíamos, então, regular a aprendizagem ou certificá-la?
Podemos discutir sobre as provas, pensar que são uma forma de avaliação pouco confiável, que não levam em conta o aprendizado, que abrem amplo espaço ao imprevisto, à “decoreba”, à trapaça, ou a habilidades que não têm relação com o que se supõe ser o objeto de avaliação das provas: saber fingir conhecimentos, se auto-promover, esquivar-se das perguntas difíceis, negociar a nota.
Resta saber se a forma pode viciar o conteúdo.
A prova clássica é adequada mais para a avaliação de conhecimentos e não de competências.
O que é grave é que a forma de avaliação tradicional permite privilegiar certos objetivos, mas deixa de lado outros aprendizados de igual importância, porém mais difíceis de serem revelados por meio de uma prova do tipo “papel-caneta”.
Qual o papel da negociação nos processos tradicional e formativo de avaliação?
A avaliação escolar nunca é uma simples medição.
Ela prepara decisões: reprovação, passagem para a série seguinte, orientação, exclusão, certificação, regulamentação.
Essas decisões trazem conseqüências, modificam o futuro.
Na medida em que elas se referem a uma avaliação, esta última se torna uma aposta, objeto de estratégias e de compromissos.
A avaliação é uma relação social entre aluno e professor. Freqüentemente, os pais são envolvidos nesse processo, assim como outros alunos, outros professores, a administração. Na escola, a negociação é menos organizada e somente os que têm lastro, liderança e os códigos sociais da negociação têm chances. Dito de uma outra maneira, os pais e os estudantes que pertencem às classes privilegiadas têm mais chances nesse processo.
O problema não está na negociação da avaliação e de suas conseqüências, mas na opacidade dos processos e na desigualdade social em face da negociação.
Como o senhor destaca em seu trabalho, uma avaliação formativa incita à diferenciação. Conhecendo o sistema brasileiro de ensino e tendo como perspectiva uma regulação da aprendizagem para a valorização das competências, como lidar com as diferenças, as desigualdades individuais ou coletivas, especialmente em nossa rede pública de ensino fundamental e médio no Brasil?
A avaliação formativa está a serviço da regulamentação dos processos de aprendizado, assim como da intervenção educativa e do dispositivo de ensino-aprendizado.
Uma parte dessa regulamentação pode estar relacionada com o conjunto de uma classe de alunos: quando o professor diminui o ritmo, revisa uma matéria mal compreendida ou adota um outro método para abordar um assunto, está baseando-se numa avaliação das dificuldades de aprendizado de uma proporção considerável de seus alunos.
Seria melhor, no entanto, que a regulamentação fosse individualizada tanto quanto possível, pois todos os alunos não encontram as mesmas dificuldades.
Mas como isso seria possível com um grande número de alunos? É preciso levar essa objeção a sério, mas com uma nuance: mesmo quando um professor tem apenas dez ou doze alunos, ele não estará necessariamente capacitado a diagnosticar as dificuldades de aprendizado de cada um e de lhes trazer uma resposta adequada.
A pedagogia diferenciada e a avaliação formativa que a acompanha exigem competências de observação e de metacognição, e evidentemente competências didáticas direcionadas a propor tarefas e situações pertinentes e produtivas.
É fácil constatar que uma criança não está aprendendo a ler, muito mais difícil é saber o porquê e ainda mais difícil é encontrar uma estratégia alternativa.
É necessário também parar de pensar a pedagogia diferenciada como uma adição de aulas particulares.
Ela pressupõe um remanejamento radical da organização do trabalho, uma equipe de professores se encarregando dos alunos, o funcionamento em ciclos plurianuais, o ajuste fino de grupos de necessidades, o esclarecimento dos objetivos, a capacidade de se fazer uma avaliação criteriosa, a inserção em um projeto escolar e um processo de profissionalização interativa.
Resta ainda dizer que nenhuma pedagogia diferenciada digna desse nome é possível em condições de trabalho desastrosas: classes superlotadas, professores mal preparados, mal pagos, pouco reconhecidos, gestão pouco dinâmica dos estabelecimentos de ensino etc.
É por isso que a pedagogia diferenciada deve ser a expressão de uma política de educação no patamar do Estado.
No mais, não se pode exigir que a pedagogia lute por ela mesma contra a pobreza e as desigualdades econômicas e culturais.
Os processos de avaliação escolar criam “hierarquias artificiais de excelência”.
Especialmente para os alunos que não se encontram no topo desta hierarquia, a avaliação pode ter conseqüências muito ruins. Como avaliar sem criar tais hierarquias?
Essas hierarquias não são nem arbitrárias nem artificiais.
Em todas as sociedades, mesmo sem escola, existem hierarquias de excelência, existem classificações em todos os domínios importantes onde a extensão dos conhecimentos ou das competências faz diferença.
Não se pode valorizar uma forma de excelência e não classificar os indivíduos em função de seu distanciamento a essa norma.
É assim na arte, no esporte, no jogo, no trabalho, nas relações humanas. A escola não pode fugir da excelência e da comparação, e conseqüentemente das classificações. Os alunos as reintroduzem enquanto os professores tentam suprimi-las. O problema vai além: não reduzir os seres humanos à sua posição nas hierarquias de excelência escolar e não congelá-los na posição que ocupavam ao concluírem a educação fundamental.
Como a escola pode inspirar a confiança dos alunos para revelar competências sem que a constatação do fracasso de uns ou do sucesso de outros seja um impedimento para a cooperação entre todos?
Uma das idéias interessantes dos últimos anos é a de comunidade educativa no sentido de um grupo solidário, onde cada um é co-responsável pela formação de todos. Isso exige uma educação à solidariedade e a rejeição da competição extrema como motor do trabalho.
As pedagogias institucionais, as pedagogias cooperativas inspiradas por Freinet mostram que esta comunidade de trabalho é possível.
Isso exige também a solidariedade dos pais. Se cada um se comportar como um consumidor da escola, preocupando-se somente com a aprovação de seus filhos, indiferentes ao desempenho dos outros, será difícil de ensinar a cooperação e a responsabilidade coletiva aos alunos.
Em que medida professor e aluno utilizam-se dos mecanismos de manipulação e poder da comunicação em sala de aula? E se utilizam desse poder para resolver que tipo de necessidades?
Como a busca pela excelência, a busca por poder faz parte da vida social em todas as épocas e em todas as sociedades. A escola deveria ensinar a reconhecer e a gerir esta dimensão da existência, a conceitualizá-la e a encará-la frente aos processos de influência. Se existe manipulação e usos perversos do poder, é porque o conhecimento dos mecanismos de poder é muito mal disseminado.
Algumas pessoas não têm nenhum mecanismo de defesa, são incapazes de reconhecer e de denunciar uma manipulação, uma sedução perversa, uma chantagem afetiva, uma autoridade sádica, a busca por um bode expiatório.
Não é estranho que professores e estudantes tentem influenciar os outros de acordo com seus interesses. Podemos reivindicar deles uma ética do poder, mas a regulamentação mais interessante é garantir a todos uma “educação para o poder”, terrivelmente ausente na educação fundamental. Talvez fosse necessário colocá-la no centro de uma educação para a cidadania.
"A perversão mais grave da avaliação é avaliar conhecimentos que a escola não ensinou"
O sociólogo suíço Philippe Perrenoud é uma referência para educadores no Brasil. Professor na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação na Universidade de Genebra, autor de vários títulos importantes na área de formação de professores - hoje considerados leitura obrigatória para os profissionais do ensino - Perrenoud é conhecido por suas idéias pioneiras sobre avaliação em sala de aula.
Entre seus livros, destacam-se Avaliação - Da excelência à regulação das aprendizagens, Construir as competências desde a escola, Pedagogia Diferenciada e Dez novas competências para ensinar.
O sociólogo educador estudou as desigualdades sociais e a evasão escolar e tem como uma das suas linhas de pesquisa a “fabricação” do fracasso escolar.
Perrenoud, que ficou conhecido no Brasil como o pensador dos ciclos de aprendizagem, é professor e pesquisador das áreas de currículo escolar, práticas pedagógicas e instituições de formação na Universidade de Genebra, onde se tornou um teórico rigoroso.
Seu trabalho tem contribuído não apenas para uma melhor compreensão do que acontece na Escola, mas também para a mudança de seu funcionamento, na tentativa de torná-la uma instituição cada vez menos injusta e desigual.
O autor foi uma referência para os novos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e do Programa de Formação de Professores Alfabetizadores, estabelecidos pelo MEC, nos anos 1990.
Philippe Perrenoud concedeu essa entrevista sobre Avaliação Formativa e as relações de poder entre professores, estudantes, pais e instituições.
O que dizer da perversão de um ensino que prepara somente para a prova?
Phillipe Perrenoud: Supõe-se que a avaliação verifica unicamente o que é ensinado e, a princípio, tudo o que é ensinado.
A perversão mais grave da avaliação é avaliar conhecimentos que a escola não ensinou.
Mas é desejável que, de alguma forma, uma parte da formação seja avaliada.
Como poderíamos, então, regular a aprendizagem ou certificá-la?
Podemos discutir sobre as provas, pensar que são uma forma de avaliação pouco confiável, que não levam em conta o aprendizado, que abrem amplo espaço ao imprevisto, à “decoreba”, à trapaça, ou a habilidades que não têm relação com o que se supõe ser o objeto de avaliação das provas: saber fingir conhecimentos, se auto-promover, esquivar-se das perguntas difíceis, negociar a nota.
Resta saber se a forma pode viciar o conteúdo.
A prova clássica é adequada mais para a avaliação de conhecimentos e não de competências.
O que é grave é que a forma de avaliação tradicional permite privilegiar certos objetivos, mas deixa de lado outros aprendizados de igual importância, porém mais difíceis de serem revelados por meio de uma prova do tipo “papel-caneta”.
Qual o papel da negociação nos processos tradicional e formativo de avaliação?
A avaliação escolar nunca é uma simples medição.
Ela prepara decisões: reprovação, passagem para a série seguinte, orientação, exclusão, certificação, regulamentação.
Essas decisões trazem conseqüências, modificam o futuro.
Na medida em que elas se referem a uma avaliação, esta última se torna uma aposta, objeto de estratégias e de compromissos.
A avaliação é uma relação social entre aluno e professor. Freqüentemente, os pais são envolvidos nesse processo, assim como outros alunos, outros professores, a administração. Na escola, a negociação é menos organizada e somente os que têm lastro, liderança e os códigos sociais da negociação têm chances. Dito de uma outra maneira, os pais e os estudantes que pertencem às classes privilegiadas têm mais chances nesse processo.
O problema não está na negociação da avaliação e de suas conseqüências, mas na opacidade dos processos e na desigualdade social em face da negociação.
Como o senhor destaca em seu trabalho, uma avaliação formativa incita à diferenciação. Conhecendo o sistema brasileiro de ensino e tendo como perspectiva uma regulação da aprendizagem para a valorização das competências, como lidar com as diferenças, as desigualdades individuais ou coletivas, especialmente em nossa rede pública de ensino fundamental e médio no Brasil?
A avaliação formativa está a serviço da regulamentação dos processos de aprendizado, assim como da intervenção educativa e do dispositivo de ensino-aprendizado.
Uma parte dessa regulamentação pode estar relacionada com o conjunto de uma classe de alunos: quando o professor diminui o ritmo, revisa uma matéria mal compreendida ou adota um outro método para abordar um assunto, está baseando-se numa avaliação das dificuldades de aprendizado de uma proporção considerável de seus alunos.
Seria melhor, no entanto, que a regulamentação fosse individualizada tanto quanto possível, pois todos os alunos não encontram as mesmas dificuldades.
Mas como isso seria possível com um grande número de alunos? É preciso levar essa objeção a sério, mas com uma nuance: mesmo quando um professor tem apenas dez ou doze alunos, ele não estará necessariamente capacitado a diagnosticar as dificuldades de aprendizado de cada um e de lhes trazer uma resposta adequada.
A pedagogia diferenciada e a avaliação formativa que a acompanha exigem competências de observação e de metacognição, e evidentemente competências didáticas direcionadas a propor tarefas e situações pertinentes e produtivas.
É fácil constatar que uma criança não está aprendendo a ler, muito mais difícil é saber o porquê e ainda mais difícil é encontrar uma estratégia alternativa.
É necessário também parar de pensar a pedagogia diferenciada como uma adição de aulas particulares.
Ela pressupõe um remanejamento radical da organização do trabalho, uma equipe de professores se encarregando dos alunos, o funcionamento em ciclos plurianuais, o ajuste fino de grupos de necessidades, o esclarecimento dos objetivos, a capacidade de se fazer uma avaliação criteriosa, a inserção em um projeto escolar e um processo de profissionalização interativa.
Resta ainda dizer que nenhuma pedagogia diferenciada digna desse nome é possível em condições de trabalho desastrosas: classes superlotadas, professores mal preparados, mal pagos, pouco reconhecidos, gestão pouco dinâmica dos estabelecimentos de ensino etc.
É por isso que a pedagogia diferenciada deve ser a expressão de uma política de educação no patamar do Estado.
No mais, não se pode exigir que a pedagogia lute por ela mesma contra a pobreza e as desigualdades econômicas e culturais.
Os processos de avaliação escolar criam “hierarquias artificiais de excelência”.
Especialmente para os alunos que não se encontram no topo desta hierarquia, a avaliação pode ter conseqüências muito ruins. Como avaliar sem criar tais hierarquias?
Essas hierarquias não são nem arbitrárias nem artificiais.
Em todas as sociedades, mesmo sem escola, existem hierarquias de excelência, existem classificações em todos os domínios importantes onde a extensão dos conhecimentos ou das competências faz diferença.
Não se pode valorizar uma forma de excelência e não classificar os indivíduos em função de seu distanciamento a essa norma.
É assim na arte, no esporte, no jogo, no trabalho, nas relações humanas. A escola não pode fugir da excelência e da comparação, e conseqüentemente das classificações. Os alunos as reintroduzem enquanto os professores tentam suprimi-las. O problema vai além: não reduzir os seres humanos à sua posição nas hierarquias de excelência escolar e não congelá-los na posição que ocupavam ao concluírem a educação fundamental.
Como a escola pode inspirar a confiança dos alunos para revelar competências sem que a constatação do fracasso de uns ou do sucesso de outros seja um impedimento para a cooperação entre todos?
Uma das idéias interessantes dos últimos anos é a de comunidade educativa no sentido de um grupo solidário, onde cada um é co-responsável pela formação de todos. Isso exige uma educação à solidariedade e a rejeição da competição extrema como motor do trabalho.
As pedagogias institucionais, as pedagogias cooperativas inspiradas por Freinet mostram que esta comunidade de trabalho é possível.
Isso exige também a solidariedade dos pais. Se cada um se comportar como um consumidor da escola, preocupando-se somente com a aprovação de seus filhos, indiferentes ao desempenho dos outros, será difícil de ensinar a cooperação e a responsabilidade coletiva aos alunos.
Em que medida professor e aluno utilizam-se dos mecanismos de manipulação e poder da comunicação em sala de aula? E se utilizam desse poder para resolver que tipo de necessidades?
Como a busca pela excelência, a busca por poder faz parte da vida social em todas as épocas e em todas as sociedades. A escola deveria ensinar a reconhecer e a gerir esta dimensão da existência, a conceitualizá-la e a encará-la frente aos processos de influência. Se existe manipulação e usos perversos do poder, é porque o conhecimento dos mecanismos de poder é muito mal disseminado.
Algumas pessoas não têm nenhum mecanismo de defesa, são incapazes de reconhecer e de denunciar uma manipulação, uma sedução perversa, uma chantagem afetiva, uma autoridade sádica, a busca por um bode expiatório.
Não é estranho que professores e estudantes tentem influenciar os outros de acordo com seus interesses. Podemos reivindicar deles uma ética do poder, mas a regulamentação mais interessante é garantir a todos uma “educação para o poder”, terrivelmente ausente na educação fundamental. Talvez fosse necessário colocá-la no centro de uma educação para a cidadania.
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